Manuseio Ventilatório nas Doenças
Neuromusculares
Ana Lúcia
Langer
Introdução
As distrofias
musculares englobam um conjunto de patologias de origem genética que afetam a
musculatura esquelética. Estas patologias diferem entre si quanto ao tipo de
musculatura atingida, origem genética, idade de início e quadro evolutivo. A
forma mais freqüente e grave é a distrofia muscular tipo Duchenne, que afeta
crianças de sexo masculino, numa proporção de 1:3500 nascimentos de sexo
masculino, com uma expectativa de vida atual em torno de 20 anos. A causa mortis
de mais de 80% dos pacientes está
na esfera pulmonar, onde observamos insuficiência ventilatória e quadros
infecciosos sobrepostos.
Patofisiogia
Ventilação X Falência de oxigenação
Há dois gases importantes no sangue, o oxigênio - O2 e o dióxido de
carbono - CO2. A pressão normal do CO2 no sangue oscila entre 35 e 44 mmHg.
Valores acima destes (hipercapnia) indicam hipoventilação alveolar e
geralmente ocorrem em decorrência da fraqueza da musculatura respiratória. Os
principais músculos responsáveis pela respiração são o diafragma (responde
por 2/3 da mesma) e a musculatura intercostal. Clinicamente pode-se observar
respiração mais superficial e aumento da freqüência respiratória.
O oxigênio sangüíneo normalmente
encontra-se ligado à hemoglobina, formando a oxihemoglobina. A situação de
hipoxemia, onde a saturação sangüínea de oxigênio - SO2 decresce abaixo de
95%, é decorrente da hipercapnia da hipoventilação. Há um bloqueio da
membrana de trocas gasosas quando secreções mucosas obstruem as vias aéreas.
Como resultado podemos encontrar processos atelectásicos ou pneumonias.
Existem enfoques diferentes entre
indivíduos com musculatura respiratória normal e processos pulmonares daqueles
com doenças neuromusculares. No primeiro caso a hipoxia ocorre devido ao
processo pulmonar. Esta hipoxia faz com que o controle respiratório cerebral
instrua a musculatura respiratória para que trabalhe mais efetivamente e numa
freqüência maior. Os pulmões tornam-se melhores ventilados e os níveis de
CO2 caem abaixo do normal. O tratamento para pessoas com hipoxia devida à doença
pulmonar é a ministração de oxigênio, pois nestes casos a hipoxia resulta
da falência da oxigenação.
A falência primária de oxigenação
raramente raramente ocorre em pacientes neuromusculares, exceto naqueles onde
haja doença pulmonar concomitante. No segundo grupo há falência muscular e
conseqüentemente não ocorre ventilação adequada e clearence de secreções.
A musculatura inspiratória, enfraquecida, faz com que ocorra hipercapnia,
hipoventilação pulmonar e, como decorrência, tem-se hipoxia. Assim, pessoas
nestas condições tem primariamente falência na ventilação.
Fatos importantes devem ser
ressaltados: nestes casos, onde a hipoxemia é secundária à hipercapnia, a
suplementação de oxigênio faz com que o controle respiratório cerebral não
seja estimulado pois há normalização dos níveis de O2. Porém, a hipercapnia
torna-se mais grave. O paciente torna-se comatoso (narcose pelo CO2) e, seqüencialmente
há parada respiratória.
O que é, então, falência ventilatória
e quando ela ocorre?
Insuficiência
ventilatória é a presença de hipercapnia devido à falência de ventilação
normal nas membranas de trocas gasosas. Inicialmente ela ocorre no sono profundo
e, progressivamente, atinge outras etapas do sono e as horas do dia. O
comprometimento do diafragma pode fazer com que os pacientes não consigam
manter a ventilação na posição supina, mas possam faze-lo sentados.
Os
sintomas de hipoventilação nem sempre são perceptíveis. Entretanto, alguns
deles devem chamar a atenção do médico: fadiga, distúrbios do sono como
pesadelos, insônia, terror noturno, cefaléia matinal, confusão, desorientação,
ansiedade, diminuição do apetite, perda de peso, alteração da voz ( mais tênue,
débil), tosse não produtiva.
Na falência ventilatória
há uma superficialização progressiva da respiração, com altos níveis de
CO2 e baixos de O2. O CO2, sendo ácido, faz aumentar estes radicais no sangue,
levando a uma compensação renal através de reabsorção de bicarbonato. O
bicarbonato circulante atua no controle cerebral de forma negativa, permitindo a
progressão da hipercapnia e piora do ritmo respiratório. Com a diminuição da
amplitude respiratória, algumas áreas pulmonares passam a não serem
expandidas, resultando, então, em atelectasias. A piora torna-se mais intensa,
a hipercapnia mais importante e o coma torna-se cada vez mais próximo.
A falência ventilatória
não ocorre repentinamente. Os pacientes, apesar da patologia neuromuscular,
conseguem manter uma situação estável por um bom período. A presença de
infecções do trato respiratório é responsável por 85% dos casos de falência.
Nesta situação, a musculatura é obrigada a trabalhar mais intensamente,
podendo ocorrer a fadiga. A presença de secreções e a dificuldade de
clearence pela impossibilidade de uma tosse efetiva corroboram com o quadro. Há
um bloqueio da via aérea, diminuição da capacidade vital e dos volumes
respiratórios. A multiplicação bacteriana é o passo seguinte, resultando em
pneumonias, hospitalização, intubação e necessidade de suporte ventilatório.
A falência respiratória
resultante da hipoventilação e secreção pode ser prevenida. É importante o
médico conhecer esta prevenção para poder oferece-la a seus pacientes.
Nos episódios
de falência respiratória, o paciente chega aos departamentos de emergência
onde médicos, desconhecendo o conceito de falência ventilatória tendem a
tratar os sintomas com administração de oxigênio, broncodilatadores e freqüentemente
sedativos. Isto leva a uma exacerbação da hipoventilação e falência súbita
com conseqüente necessidade de intubação (raramente necessária para estes
pacientes) ou óbito. Nestes casos deve-se lembrar que o importante é VENTILAR
e não oxigenar o paciente.
Acompanhamento
Evolutivo
Indivíduos com distrofia
muscular e outras doenças neuromusculares, de forma paralela ao enfraquecimento
motor, tem progressivamente afetada sua musculatura respiratória. Daí, a
importância de um acompanhamento periódico para que medidas adequadas possam
ser tomadas em cada momento evolutivo da patologia.
O acompanhamento
respiratório deve-se iniciar tão logo seja feito o diagnóstico. Assim,
pode-se ter um parâmetro inicial que será comparado com futuras observações.
Sua freqüência poderá ser de uma a seis vezes ao ano, dependendo do tipo de
distrofia muscular, da idade do paciente e de sua evolução clínica.
Para o seguimento são
feitos testes de função pulmonar. Estes exames são não invasivos e
quantificam o grau de comprometimento respiratório ao se comparar com valores
“standarts” chamados preditos.
Este tipo de teste
requer que a criança tenha maturidade suficiente para o entendimento das instruções
e cooperação com o profissional.
Os principais parâmetros
analisados nos testes são os seguintes:
1)
Medidas de fluxo pulmonar, capacidades e volumes.
Um teste freqüentemente usado é a medida da
capacidade vital forçada – CVF, onde se mede a quantidade de ar que pode ser
expelida, o mais rapidamente possível, após uma inspiração profunda. Freqüentemente
há diferença significativa entre a espirometria na posição sentada e
deitada: alguns portadores podem ter CVF normal no primeiro caso e alterada no
segundo. Há, também, enormes diferenças se a avaliação for feita nas posições
laterais entre um lado e o outro. Portanto, idealmente, os testes deveriam
ocorrer em várias posições e situações.
2)
Análise do padrão respiratório onde se avalia a coordenação entre
caixa torácica e abdome.
3)
Capinografia
É a medida do CO2 exalado. Em pessoas com
patologia neuromuscular o CO2 do final da expiração é essencialmente igual à
concentração do CO2 sangüíneo.
4)
Oximetria.
A saturação de oxigênio da hemoglobina, ou
seja da oxihemoglobina (SO2), depende da concentração de O2 no sangue. As
baixas SO2 resultam de hipoxia e a hipoxia pode ser resultante de um pulmão mal
ventilado. A SO2 normal é de 95% ou mais e pode ser medida por um simples oxímetro
de pulso. A oximetria é também importante para a monitorização noturna. Está
indicada nos seguintes casos:
a)
Indivíduos com sintomas de hipoventilação;
b)
Capacidade vital na posição supina é muito menor que na posição
sentada;
c)
Necessidade de dois ou mais travesseiros para o sono;
d)
Capacidade vital < 40% do normal em qualquer posição;
e)
Capinografia indicando subventilação (pCO2 > 44% mmHg);
f)
SO2 < 95% durante o dia, na ausência de doença pulmonar ou rolhas de
muco.
5)
Gasometria arterial.
6)
Medida do fluxo da tosse
Pode ser feita através de um simples medidor de
peak flow ou espirômetro. Mais adiante falaremos detalhes sobre a problemática
da tosse.
7)
Escoliose
A escoliose é uma complicação comum da
distrofia muscular e pode progredir rapidamente se não tratada, comprometendo
de forma ainda mais intensa a capacidade vital. Portanto, durante o seguimento
clínico, o grau de curvatura da coluna deve ser sempre avaliado através de
exame radiológico. A cirurgia nunca deverá ser postergada, pois a correção não
será eficiente e se a capacidade
vital estiver menor que 23% poderá ser alto o rico operatório.
A indicação do momento cirúrgico também
depende da capacidade vital. Em indivíduos normais há um plateau de CV em
torno dos 19 anos, com decréscimo de 1 a 2% ao ano. Pacientes com distrofia
muscular de Duchenne tem pico em torno de 10 a 15 anos. Caso neste plateau a CV
tenha um volume de ar menor que 1500 ml, ocorre escoliose em 100% dos casos, com
quadro severo. A cirurgia nestes casos tem indicação precoce. Por outro lado,
quando no plateau há capacidade vital com
3000ml de ar, acima de 25% dos pacientes com DMD não desenvolvem
escoliose severa e, portanto, não requerem intervenção. Neste caso pode-se
aguardar a curvatura chegar a 40 graus.
Na escolha do momento cirúrgico deve-se ter em
mente que pacientes com DMD tem perda de CV em torno de 20% ao ano sem correção
da escoliose. Após a cirurgia esta perda declina para 5% ao ano.
Ventilação
não invasiva
A estratégia de grande
parte dos médicos ao se deparar com insuficiência ventilatória decorrente da
fraqueza muscular é ignorar o problema. Muito profissionais só introduzem
ajuda ventilatória nos episódios de falência aguda, quando geralmente
torna-se necessária a intubação e, subseqüentemente, a traqueostomia.
Outros, posicionam-se de forma mais cética, acreditando que não vale a pena
investir em quem imagina ter tão pobre qualidade de vida. Muitos ainda sequer
ouviram falar de ventilação não invasiva.
Assim, a grande maioria dos pacientes
sequer ouviu falar nesta “ventilação não invasiva”. Aqueles que recusam a
“traqueostomia profilática”, invariavelmente evoluem para a falência
respiratória aguda.
Alguns tratamentos “convencionais”
incluem medicações normalmente usadas para pneumopatas crônicos. Entre elas
tem-se a teofilina, que na presença de hipercapnia e hipoxia, pode agravar a
fadiga diafragmática. Broncodilatadores beta2 agonistas freqüentemente causam
ansiedade pelo aumento da freqüência cardíaca e podem exacerbar uma disfunção
cardíaca em vários pacientes com cardiomiopatia ou cor pulmonale.
Os músculos inspiratórios e expiratórios
podem ser auxiliados por aplicação de forças, de forma manual ou mecânica,
no corpo ou por pressões intermitentes na via aérea.
Entre os que atuam no corpo estão os
NPBVs ( negative pressure body ventilators), que fazem uma pressão negativa
intermitente ao redor da parede torácica ou abdominal, facilitando a entrada do
ar pela via aérea. Outros aparelhos atuam aplicando pressões positivas nas
vias aéreas durante a fase inspiratória, ajudando esta musculatura.
Por sua praticidade, preço,
portatibilidade, os aparelhos que aplicam pressões sobre as vias aéreas (ou
IPPV - intermitent pressure positive ventilation) levam grande vantagem sobre os
NPBVs. Entre estes aparelhos, existem 2 grandes grupos: os ventiladores a pressão
e os ventiladores a volume. Os ventiladores a pressão deixariam disponível um
volume de ar até o ponto em que a pressão limite seja atingida. Por outro
lado, nos ciclados a volume, só o volume determinado está disponível, não
importando a pressão com que atinja os pulmões. Em ambos tipos há ar disponível
apenas na fase inspiratória. Nos dois modos a ventilação não invasiva poderá
ser administrada por máscaras nasais, bucais, oronasais ou por tubo na via aérea.
Na literatura há defensores de ambas
modalidades, mas nos últimos anos os ventiladores a pressão do tipo BiPAP (Bilevel
positive pressure airway) tem se tornado mais populares devido serem de manipulação
simples, inclusive feita pela própria família ou pelo paciente, e mais
baratos. Nas máquinas BiPAP a pressão positiva é ajustada separadamente nas
fases ins e expiratória, porém na falência ventilatória de pacientes
neuromusculares apenas a fase inspiratória é necessária.
A ventilação não invasiva
inicialmente pode ser necessária apenas nos episódios gripais. Com o evoluir da fraqueza da
musculatura respiratória, seu uso passa a ser necessário no período noturno e
progressivamente o número de horas vai aumentando até atingir as 24 horas do
dia.
As indicações para o uso de ventilação
não invasiva, segundo consenso internacional de 1999, são as seguintes:
1)
Sintomas como fadiga muscular respiratória, dispnéia, cefaléia
matinal.
2)
Critérios fisiológicos:
a.
PaCO2 > ou = 45mmHg
b.
Oximetria noturna demonstrando saturação de oxigênio < ou = 88% por
5 minutos consecutivos
c.
Pressão inspiratória máxima < 60 cmH20
d.
Capacidade vital forçada < 50% do predito
Obs: segundo a Muscular Dystrophy Association o
valor de CVF < ou = 40% do valor predito indica auxílio ventilatório
noturno. Aos 30%, a indicação é de ventilação por 24 horas.
Auxílio
à musculatura expiratória (tosse)
Uma
tosse normal normalmente requer uma insuflação inicial de cerca de 85 a 90% da
capacidade pulmonar. Este ar é momentaneamente aprisionado pelo fechamento da
glote devido ao aumento das pressões intratorácicas e intra abdominais acima
de 200 cm de água. Repentinamente
há abertura glótica e cerca de 2500 ml de ar é expelido forçadamente. O pico
normal de fluxo de tosse oscila entre 6000 e 17000ml/seg.
A musculatura
inspiratória de pacientes neuromusculares freqüentemente não tem poder para
criação de um fluxo adequado para a expulsão das secreções. Pacientes com
capacidade vital < 1000-1500 ml ou pico de fluxo de tosse < 4,5 litros por/segundo
necessitam auxílio para fluxo adequado de tosse. Este auxílio pode ser manual,
com a aplicação de pressões intra abdominais logo no início da fase de
expulsão do ar ou através de aparelhos.
Quando o pico de
fluxo de tosse cai abaixo de 2,7 litros por segundo, já não é mais possível
nenhum tipo de tosse.
O auxílio mecânico
à tosse envolve aparelhagem que promove uma insuflação profunda ( cerca de 30
a 50 cm de água) seguida de uma exsuflação com uma pressão negativa da mesma
monta. Ciclos de insuflação e exsuflação podem ser repetidos ate´ o
clearence completo das secreções e retorno da saturação de oxigênio até os
níveis normais.
Existem vários
modelos de aparelhos de tosse, mas o mais popular é o Emerson In-exsufflator,
pela facilidade do manejo.
O Emerson
in-exsufflator éum dos aparelhos que deve acompanhar pacientes em ventilação
não invasiva e não traqueostomizados. O uso deste aparelho permite que
pacientes com quadros gripais e secreções não tenham pneumonia, falência
respiratória e, portanto, evita hospitalizações. Ele também é usado para a
extubação de pacientes neuromusculares em pós operatório e , finalmente,
evita a necessidade de intubação para aspiração nos pacientes com falência
respiratória devido a quadros gripais.
Considerações
Finais
1)
Todos os estudos demonstram que o uso de ventilação não invasiva pode
diminuir significativamente a incidência de hospitalização devido a quadros
respiratórios e prolongar a vida de pacientes com distrofia muscular e outras
patologias neuromusculares em pelo menos 10 anos, sem necessidade de
traqueostomia.
2)
Ainda que tanto a traqueostomia como a ventilação não invasiva-
IPPV possam prolongar a vida, a IPPV por traqueostomia é associada a
numerosas complicações, além de ser dispendiosa. Há necessidade de
profissionais especializados com muito mais freqüência do que a ventilação não
invasiva, geralmente controlada pelo próprio paciente ou familiares. Além
disso, pacientes traqueostomizados tem custos associados a cateteres e outros
objetos para sua manipulação, e ainda são hospitalizados muito mais freqüentemente
que o grupo em ventilação não invasiva.
3)
A maioria dos pacientes prefere cuidados não invasivos em relação`a
traqueostomia pela segurança, conveniência, aparência, conforto, para dormir,
deglutir e pela aceitabilidade da sociedade.
4)
O não uso de cuidados rsepiratórios faz com que a capacidade vital
diminua 20% ao ano. Com o uso de ventilação não invasiva há diminuição da
queda para apenas 5% ao ano. Portanto, a IPPV não invasiva aumenta a sobrevida,
como já citamos, em 10 anos.
5)
Finalmente, o oxigênio nunca deve ser usado em pacientes
neuromusculares, a não ser em UTIs e somente quando o paciente está
intubado.
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