13.Jul.2002 |
24 de abril de 2002, Hospital Saint Paul, avenida Euzébio Matoso, Zona Sul da
cidade de São Paulo. O fisiologista chinês radicado nos EUA Peter K. Law e os
médicos paulistas Wagner Fiori, Euclydes Marques e Márcio Peres Ribeiro têm o
que o jargão médico designa de procedimento agendado. O paciente é Bruno
Almeida Silveira, 9 anos, de Goiânia (GO), suposto portador de distrofia
muscular de Duchenne. A doença é genética, incurável e afeta apenas meninos,
degenerando todos os músculos. No Brasil, existem cerca de 28 mil casos. Aos 3,
4 anos de idade, começam a ter quedas freqüentes e dificuldades para subir
escadas, correr; aos 12, muitos param de andar; ao redor dos 17, a maioria morre
por insuficiência respiratória ou cardíaca.
O tratamento programado para Bruno é o transplante ou transferência de
mioblastos (células formadoras de músculos). Exatamente o procedimento que, em
31 de maio último, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou à União
que pagasse a uma jovem de 20 anos. Também o mesmo a que vários garotos
brasileiros com Duchenne foram submetidos com a promessa de que até voltariam a
jogar bola. O preço cobrado inicialmente foi 150 mil dólares. Tudo foi
acertado com Maria Monteiro, na verdade a repórter, identificada na primeira
consulta com parte do seu nome, e suposta madrinha de Bruno, que
após dura negociação, conseguiu baixar para 134 mil dólares. Os R$
382.436,00 (câmbio de 9 julho) teriam que ser depositados até 24 de março na
conta bancária da Cell Transplants Asia Limited no Hong Kong Bank, em Hong
Kong, Ásia. Número do banco: 004. Conta bancária: 485-232367. A Cell
Transplants pertence a Peter K. Law, chefe da equipe e presidente da Cell
Therapy Research Foundation, localizada em Memphis, Tennessee, EUA.
“O transplante de 50 bilhões de mioblastos aumenta a força muscular e
melhora muito a qualidade de vida das crianças com Duchenne. Uma até voltou a
andar. Vale a pena tentar”, recomenda Wagner Fiori à madrinha do fictício
Bruno durante consulta na Genesys Research Institute, sua clínica na
região dos Jardins. Ele a divide com os sócios Euclydes Marques e Márcio
Peres Ribeiro, cirurgiões do Instituto do Coração, o Incor-SP. Fiori dá o
endereço de Peter Law, cujo site proclama: “mais de 230 transplantes
realizados com sucesso superior a 75%!”
“O tratamento é experimental, e os resultados muito bons”, garante Tunja
Jackson, diretora da Cell Therapy, em Memphis. A vice-presidente e tesoureira
Tena Goodwin sustenta: “Todos os transplantados tiveram grande melhora e/ou
considerável diminuição da degeneração muscular. Doutor Law acredita que
Bruno terá tais benefícios. A alternativa é não fazer nada, o que achamos
pior”. O próprio Peter K. Law bate o martelo diante das dúvidas em relação
à competência da equipe brasileira: “Eu mesmo ou alguém aqui do meu staff
pode fazer o transplante no Brasil, se isso deixar a mãe de Bruno mais tranqüila”.
Houve cinco detalhes cruciais na negociação, que consumiu uma consulta médica,
56 e-mails e vários contatos telefônicos entre a madrinha e a organização
de Peter Law:
1. O fictício paciente teria 7 anos no início da transação (agosto de 2000)
e 9 anos no final (abril de 2002);
2. Em nenhum momento alguém quis saber como evoluía sua doença. Os fundos e o
depósito bancário eram a única preocupação;
3. A Cell Therapy abriu mão da visita obrigatória de Bruno a Memphis,
onde verificaria se era ou não elegível para o tratamento. Bastou a isca: “a
família já conseguiu o dinheiro”;
4. O menino foi aprovado para o transplante antes mesmo que supostos resultados
de testes fossem enviados aos EUA. Foi suficiente o aceno com o depósito dos
134 mil dólares no Hong Kong Bank;
5. Peter Law marcou o transplante sem que ele ou qualquer membro da equipe
brasileira tivesse visto Bruno.
Esperanças traídas
O transplante de mioblastos é ilegal nos EUA, no Canadá, na Europa e no
Brasil. Em 9 de janeiro de 2002, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou
parecer condenando o procedimento. “Infelizmente, não funciona para Duchenne
nem para qualquer outro tipo de distrofia muscular”, adverte Mayana Zatz,
professora-titular de Genética do Instituto de Biociências da Universidade de
São Paulo, USP. Além disso, é mentira que não existe tratamento a fazer. Está
comprovado que a combinação de fisioterapia, corticosteróides (um tipo de
antiinflamatório) e ventilação assistida retarda a evolução natural de
Duchenne, aumentando, no mínimo, em 10 anos a sobrevida dos doentes; já há
relatos de portadores de Duchenne com 35 anos de idade.
Não se trata, como os pais às vezes dizem, de um “ponto de vista da doutora
Mayana” ou “do pessoal da USP”. A comunidade científica mundial assina
embaixo. Em peso, o faz o primeiro time da área de distrofia muscular, como
George Karpati, do Canadá, Terence Partridge e Victor Dubowitz, da Inglaterra,
e os neurologistas brasileiros Alain Gabbai, Acary Bulle de Oliveira, Lineu César
Werneck e Umbertina Reed (leia Por que é ineficaz). Não à toa a
conceituada Elizabeth McNally, professora de Genética Humana da Faculdade de
Medicina da Universidade de Chicago, EUA, sentencia: “Recomendar o transplante
de mioblastos é dar falsas esperanças a pacientes e familiares”.
Pat Furlong, líder do Parent Project, associação americana de parentes de
portadores de distrofia, e que conviveu com vários garotos transplantados,
inclusive dois filhos seus, com Duchenne, já mortos, confirma: “O transplante
de mioblastos não mudou nada na vida dos meninos. Quem não andava, continuou não
andando. Quem não se alimentava sozinho, continuou não o conseguindo”. José
Tadeu Cruz, pai de A.C., de Lages (Santa Catarina), é outra vítima e
testemunha. O filho, hoje com 17 anos, foi transplantado em 1998, em São Paulo,
por Peter Law. “Um picareta caça-níqueis. Embolsou 150 mil dólares do
Estado por três horas de trabalho, e não fez nem deixou qualquer
acompanhamento. Foi tudo para o lixo, inclusive os 20 mil dólares que gastei de
passagens e hotéis”, revolta-se (leia Fracassos encobertos).
“Inegavelmente, uma infração ética gravíssima, criminosa”, vai fundo o médico
Gabriel Oselka, professor de Bioética da Faculdade de Medicina da USP. Os médicos
que indicam ou executam o transplante de mioblastos violam normas éticas e
resoluções do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Nacional de Saúde.
Entre as infrações, prescrição de método não comprovado, promoção de
falsas esperanças e cobrança indevida. Em procedimento experimental, ou seja,
em teste, o paciente não paga nem a consulta, em qualquer lugar do mundo. A
procuradora de Estado de Santa Catarina Francis Lilian Torrecillas Silveira,
desde 1997 no encalço do grupo, desfecha: “É caso de polícia”.
Informações enganosas
Em meados dos anos 90, pesquisas sérias e éticas conduzidas por quatro
prestigiosos grupos de investigadores dos EUA e do Canadá já haviam provado
que o transplante de mioblastos, tal como é realizado até hoje, não tem eficácia.
Peter Law, já longe do meio acadêmico, prosseguiu os estudos em sua fundação
particular, obtendo autorização da Food and Drug Administration, a agência
que controla alimentos e remédios nos EUA. Contudo, a mesma FDA, após
investigação concluída em 2000, desqualificou-o, bem como a suas pesquisas,
por graves falhas e violações. Entre elas:
1. Fornecimento de informações enganosas e imprecisas à FDA.
2. Falta de notificação de reações adversas dos pacientes ao tratamento.
3. Ausência de avaliação geral dos pacientes por médico habilitado.
4. Realização de transplante sem presença de médico responsável, já
quePeter Law é fisiologista (especialista na parte da ciência que estuda
especialmente o funcionamento do organismo e sua composição bioquímica). Ou
seja, não tem formação nem treinamento em medicina.
5. Contaminação de mioblastos (o agente terapêutico usado nos transplantes)
por bactérias.
6. Exportação da terapia, ainda em pesquisa, para o Brasil e a Coréia do Sul
sem solicitar ou obter autorização da FDA.
7. Comercialização da terapia experimental, cobrando ou recebendo pagamento de
contatos no exterior.
Resultado: por colocar em risco a segurança e o bem-estar de pacientes em suas
pesquisas, Peter Law está proibido de fazer transplantes nos EUA. Com isso, o
braço brasileiro da organização se fortaleceu. “É um dos nossos principais
centros”, diz Tena Goodwin. O próprio cartão de visita da clínica Genesys
destaca: filiada à Cell Therapy Research Foundation. Em atividade desde 1997, médicos
e advogados integram o grupo no Brasil. O cérebro, porém, continua nos EUA,
incluindo a produção dos mioblastos, a partir de tecido de meninos americanos
saudáveis.
Associação para o mal
Para obter os mioblastos, certas regiões musculares dos doadores são
laceradas. Quando o tecido se regenera, retiram-se as células formadoras de músculos,
que vão, então, para cultura e proliferação. É esse material que os médicos
enxertam por meio de injeções em vários grupos musculares de pacientes. “O
geneticista do doutor Law vem e prepara os mioblastos no laboratório de genética,
que montei aqui ao lado”, conta Fiori. “Apenas executamos o transplante. São
mais de 750 injeções.”
Não é bem assim. Em 1998, Peter Law esteve em São Paulo e ensinou a técnica
a Marques, Ribeiro e Fiori. Desde então, o trio prescreve, opera e ensina o
caminho para o paciente obter o tratamento não coberto por convênios. “O
Estado tem que pagar mesmo. Várias crianças já ganharam na Justiça. Os pais
de Bruno poderiam entrar com ação”, orienta Fiori à madrinha de
Bruno.
Faz mais. Dá telefone e nome do advogado Diógenes Vargas, OAB/SC – 5.098,
que impetrou algumas dessas ações e mantém relação com toda a organização.
Vários fax a comprovam. Num dos fax, de 11 de agosto de 1998, Law, dos EUA,
avisa Vargas que os 150 mil dólares de um transplante agendado para o final
daquele mês deveriam ser depositados no Hong Kong Bank. Coincidentemente, a
mesma conta indicada para o pagamento do transplante no fictício Bruno.
“Como seu afilhado é de Goiânia, e não há nenhum caso lá, a chance de
ganhar na Justiça é de mais de 50%”, avalia Vargas, que já passou dias com
Peter Law nos EUA. “Se fosse meu filho, tentaria. Minha parte fica em 4 a 5
mil reais. O valor é pequeno, o que me realiza é o resultado,” elogia-se. A
propósito, quando fez palestras em Curitiba Law esteve sempre cercado de
advogados. Quando percebiam pais ou mães aflitos, entravam em cena: “Entra,
entra sim, com ação contra o seu Estado”.
O governo paga
O expediente é uma brecha da Constituição Federal de 1988. Em síntese diz: havendo
no exterior tratamento não oferecido aqui e que possa beneficiar o paciente, o
governo tem que arcar com o custo, já que a saúde é direito de todos, e dever
de União, Estados e Municípios, ou seja, dos governos.
Em pelo menos um caso de Duchenne, em São Paulo, e oito, em Santa Catarina, a
Justiça concedeu liminar e os governos desses estados foram obrigados a pagar o
tratamento. Esses nove casos (sem incluir despesas para exames nos EUA) custaram
aos cofres públicos quase 3,9 milhões de reais. Valor certamente aquém do que
a conexão Brasil já rendeu. “Os doutores Márcio Ribeiro, Wagner Fiori e
Euclydes Marques já fizeram mais de 20 transplantes”, contabiliza a
tesoureira da Cell Therapy Tena Goodwin.
Explica-se:
1. Alguns famílias brasileiras abonadas custearam o tratamento de seus filhos.
2. Portadores de Duchenne de outros países têm-se submetido ao transplante no
Brasil, evidenciando mudança de rota – antes, crianças de várias partes do
mundo iam para os EUA. “Já operamos 14; quatro daqui e 10 da Espanha”,
revela Fiori à madrinha. Em entrevista à repórter Conceição Lemes, o
cirurgião Marques acrescenta: “Numa das viagens do doutor Law, dois
americanos vieram também. Era a segunda transferência de um dos americaninhos.”
Outro indício está no site davidmayuri.com destinado a arrecadar fundos para o
tratamento do adolescente americano David Mayuri, da Flórida. Law, em carta
assinada, agendara a operação para 11 de junho de 2002 (veja o documento).
Local e equipe: os mesmos de Bruno .
3. Diversificação de aplicações do transplante. A prova é que, em maio último,
a juíza Regina Helena Costa, da 14ª Vara Federal de São Paulo, mandou e o STF
acatou a sentença que determinava à União pagar o tratamento à garota L.T.M,
de 20 anos, portadora de distrofia do tipo cinturas (afeta a musculatura de
pernas e braços). Na decisão, a juíza indicou como local para o procedimento
o Hospital Saint Paul, o mesmo recomendado por Peter Law a Bruno. O nome
da instituição é fantasia, pois não tem álvara para funcionar como
hospital. É, na verdade, uma clínica que trata principalmente de cirurgia estética.
Benfeitores e estratégia
O fato é que Marques, Fiori e Ribeiro apresentam-se como solidários e
devotados à ciência. E-mail repete a conhecida estratégia: “A nós não
cabe nenhum pagamento; nossa participação é por interesse científico”,
explica.
Fiori repisa o texto na consulta da madrinha: “Não recebemos nada.
Fazemos no Brasil só para facilitar a vida das crianças”. No meio da
conversa, insinua intimidade com o sonho de pais de meninos com Duchenne:
“Hoje, às 7 da noite, vamos conversar com o Peter Law. Vamos ter uma reunião
por telefone”. E ensina a acessar o site celltherapy.com, que divulga supostos
sucessos. “Fazemos só como pesquisa. Nosso intuito é acadêmico”,
enfatiza.
A afirmação, porém, falseia a realidade.
- Fiori, Marques e Ribeiro nunca submeteram qualquer projeto de pesquisa para
transplante de mioblastos em casos de Duchenne ao Conselho Nacional de Ética em
Pesquisa, a Conep do Ministério da Saúde. “Como se trata de estudo com seres
humanos, só poderia ter sido iniciado após nossa aprovação”, afirma o médico
Willian Saad Hossne, coordenador da Conep. É o que determina a Resolução 196
do Conselho Nacional de Saúde. O objetivo é garantir segurança, bem-estar e
dignidade do usuário, evitando que seja usado inescrupulosamente. Fere a ética
quem desrespeitar esse princípio.
- Wagner Fiori cobrou R$196,00 pela consulta da madrinha de Bruno
(recibo 3484, da Genesys Research Institute, CGC 00.524.677/0001-29, emitido em
nome do paciente fictício). De acordo com as normas internacionais de pesquisa,
nada é pago por tratamentos em teste. Até o transplante teria de ser gratuito.
- Curiosamente, Marques, Fiori e Ribeiro estão informados de que Peter Law e a
Cell Therapy não têm conta bancária no Brasil, conforme e-mail assinado pelos
três.
Cobaias e lucros
Na verdade, é tudo por dinheiro. A Cell Therapy Research Foundation se denomina
uma organização sem fins lucrativos, que sobrevive com doações. Entre eles,
forçosamente os pacientes: quem não paga os 150 mil dólares, não recebe o
transplante.
Um e-mail da diretora Tunja Jackson, para agendar visita prévia de Bruno
a Memphis, é um primor de mercantilismo: “Ficaremos felizes em vê-lo. Gostaríamos
também de expressar a tristeza que sentimos por vocês precisarem vender suas
propriedades para pagar o transplante do seu afilhado”.
Com tentáculos na Coréia do Sul, na Polônia, na Rússia e em Cingapura, a
organização chegou a tentar negócios com o Hospital Israelita Albert
Einstein, em São Paulo. Mas, alertada por especialistas brasileiros, a instituição
desistiu. “É incrível como no Brasil as pessoas não se dão conta da
enormidade de charlatães que existe nos EUA”, observa Alain Gabbai, professor
titular de Neurologia da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp.
O planos para o Brasil, no entanto, não são modestos. Incluem a criação de
uma fundação e o uso de transplante de mioblastos em pacientes com infarto do
miocárdio, que anualmente atinge 300 mil brasileiros. No ano passado, Peter Law
reuniu-se em São Paulo com importante cardiologista do Hospital Beneficência
Portuguesa para discutir o assunto. “A área cardíaca é a que nos interessa.
Tem um montão de gente”, diz Marques. “Só entramos em distrofia muscular,
que não é nossa área, para pegar experiência e usar em coração.”
Traduzindo, crianças com Duchenne foram usadas como cobaias para um negócio
maior. Mais tarde, em entrevista, Fiori confirma: “Estamos aplicando em
distrofia, mas só para aprender a tecnologia. É apenas um passo para a gente
usar em miocardiopatia”.
Crueldade e descaso
Condutas antiéticas não são raras em doenças incuráveis. Sem dó nem
piedade, profissionais inescrupulosos aproveitam-se do desespero de pacientes e
parentes para oferecer tratamentos enganosos, e faturar. Em geral, é grande a
distância entre o que falam às famílias no consultório e o que assumem
oficialmente. Por isso, de propósito, a madrinha de Bruno
consultou Fiori em 3 agosto de 2000 e, em outubro de 2001, voltou à carga por
e-mail. A resposta (em 4 de outubro) foi assinada por ele e os sócios Marques e
Ribeiro. E, agora, em 2002 (28 de janeiro, pessoalmente, e no final de março,
por telefone) ouviu-o também como repórter, já após o parecer do CFM contrário
ao tratamento.
O solícito médico da consulta cedeu lugar ao desmemoriado médico da
entrevista. “Preço? Isso é lá com eles. A gente não sabe nem quer saber
quanto custa”, afirmou na entrevista. Indagado se os meninos com Duchenne
pagaram o transplante, disse: “Se eles estavam dentro da pesquisa do doutor
Peter Law provavelmente os tratamentos não foram pagos”.
Mentiu. Wagner Fiori e Euclydes Marques assinam o parecer que garantiu no STJ,
em maio de 2002, o transplante à jovem com distrofia de cinturas. São
igualmente deles os pareceres para os transplantes dos garotos A.C., J.C.A, M.G.S,
de Santa Catarina, e L. T. F. M, de Macatuba (SP). Os quatro foram
transplantados em 1998 no Hospital Samaritano, em São Paulo. “Não vimos os
resultados. Mas está na nossa pauta vê-los, só não sei quando”,
desconversa Marques. “É um fragmento assim (o gesto indica mínimo) da minha
vida.”
Cremesp e Justiça ludibriados
Até o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) foi enganado na
história dos garotos transplantados no Hospital Samaritano. Marques pediu
permissão para que Peter Law, que é estrangeiro, demonstrasse o procedimento
aqui. Como é praxe, a entidade autorizou sem examinar o mérito, com a condição
de que fossem cumpridas as determinações do CFM e do Conselho Nacional de Saúde
referentes a pesquisas com humanos. Só que não era demonstração: os quatro
procedimentos custaram aos cofres públicos 600 mil dólares, e Fiori, Marques e
Ribeiro participaram. “Eles alegaram que a não realização poderia implicar
até a morte dos garotos, e, ainda, havia autorização do Cremesp e o
compromisso de cumprimento das exigências legais”, justifica o médico Jorge
Amarante, da Comissão de Ética em Pesquisa do Samaritano em documento à Conep.
“O hospital apenas cedeu gratuitamente instalações e materiais”.
Na ocasião, ludibriaram também juízes de Santa Catarina. De acordo com a
sentença, os transplantes de A.C., J.C.A e M.G.S seriam em Memphis, nos EUA.
Acabaram sendo feitos em São Paulo, no Samaritano. A Justiça Federal foi
igualmente induzida a enganos. Na decisão determinando à União pagar o
transplante à jovem com distrofia de cinturas, a juíza Regina Helena Costa, da
14ª Vara Federal de São Paulo, cita: 1. Dois meninos (um do Distrito Federal e
um de Santa Catarina) que portariam distrofia de cinturas e teriam tido
resultados favoráveis com o transplante; 2. Que a doença decorre da ausência
de distrofina nos músculos; 3. Que o transplante de mioblastos não pode ser
mais considerado pesquisa ou tratamento experimental; 4. Que Fiori, uma das
testemunhas do processo, é professor da Faculdade de Medicina da USP.
Nada disso é verdade:
1. O garoto de Santa Catarina não tem distrofia de cinturas mas Duchenne, que
é outro tipo de distrofia muscular.
2. Os músculos dos portadores de distrofia de cinturas produzem distrofina em níveis
normais; o que lhes causa a doença é a falta de outras proteínas. Quem não
tem distrofina é o portador de Duchenne.
3. Pesquisas sérias e éticas já comprovaram o oposto: o transplante de
mioblastos não funciona em Duchenne nem em qualquer tipo de distrofia muscular.
4. Fiori, que se apresenta como cardiologista, nutrólogo, médico
ortomoleculare integrante do corpo médico do Hospital Albert Einstein, nunca
passou pela Faculdade de Medicina da USP, nem como aluno. Formou-se na Faculdade
de Medicina de Valença, no Estado do Rio de Janeiro. Tampouco Fiori e Marques são
especialistas em genética, como figura em ações que tramitaram na Justiça.
Mesmo assim, assinam como peritos os pareceres favoráveis aos transplantes.
Isso igualmente agride a ética, já que também prescrevem e fazem o
tratamento.
“Há, no mínimo, um conflito de interesse”, aponta a procuradora Francis
Torrecillas. Outro aspecto estranho nas decisões judiciais que determinaram os
transplantes: em nenhuma, os verdadeiros especialistas em distrofia muscular
foram sequer citados.
Intimidação, marca registrada
Em lugar de provar que renomados cientistas do mundo inteiro estão errados,
Peter Law tenta silenciá-los com processos milionários. Mayana Zatz, que é
presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), foi
processada em 1996, nos EUA, e em 2000, no Brasil. Suas declarações
atrapalhavam os negócios. Ele contratou um dos maiores escritórios de
advocacia do Brasil (com filial em Nova York), ameaçando a pesquisadora com
processo civil e criminal. Exigia que parasse de condenar o método e se
retratasse de declarações, especialmente as fornecidas à imprensa. Mayana não
fez nem uma coisa nem outra. O próprio escritório de advocacia acabou
desistindo da causa.
Mais cruel é o recurso utilizado para calar pais de meninos já submetidos ao
tratamento: o aceno com novas pesquisas e a promessa de que os participantes da
fase inicial seriam os primeiros beneficiados. Assim, por receio, esperança ou
vergonha esses pais nem sempre assumem que foram enganados. Até por que a
fraude demora 4, 5 anos para ser descoberta, já que a doença tem evolução
lenta. “Não sei se melhorou alguma coisa”, diz evasiva Vera Gattai, mãe do
paulistano A. G., 17 anos, transplantado nos EUA em 1997. “O doutor Law e sua
equipe de Memphis acharam absurdo a cortisona e tiraram. Meu filho não a tomou
mais.”
Só que:
1. Está provado que o uso de corticosteróides atrasa a evolução da distrofia
muscular de Duchenne, e a maioria dos pacientes se beneficia. “Iniciada a
ingestão do remédio, no momento certo, faz com que andem, em média, por mais
dois anos”, salienta Lineu César Werneck, chefe do Serviço de Doenças
Neuromusculares do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, em
Curitiba. Isso significa independência até os 14 anos. Proibir corticosteróides,
portanto, é tirar essa chance.
2. A. G. não voltou a andar após o transplante. Está sofrendo a evolução
natural da doença. Já teve parada cardiorrespiratória, foi submetido à
traqueostomia (abertura de um orifício na traquéia para desobstruir as vias
respiratórias) e está internado há quase quatro meses por problemas respiratórios.
“O único jeito de ele voltar para casa é a gente conseguir o bipap”,
sonha dona Vera. Bipap é um aparelho que empurra o ar para dentro dos
pulmões e mantém a criança ventilada. É a chamada ventilação assistida
(leia Chegar aos 30 anos já é possível). O problema é que o
equipamento custa quase 18 mil reais, dinheiro de que a família não dispõe.
Gastou tudo o que tinha com advogado, intérprete, passagens e estadias para o
transplante, realizado nos EUA e custeado pelo governo de Santa Catarina.
Dinheiro de volta
As procuradorias de Santa Catarina e de São Paulo, por sinal, estão tentando
reaver o dinheiro dos tratamentos. “Como as famílias são pobres, o caminho
será algum tipo de ação na Justiça americana”, cogita José Roberto de
Moraes, subprocurador geral do Estado de São Paulo. Os quase 3,9 milhões de
reais pagos a Peter Law apenas por esses dois estados poderiam comprar bipap
para 270 portadores de Duchenne. Seria a garantia de chegarem à terceira década
de vida. “Dez anos a mais podem significar o tempo para se achar até mesmo a
cura”, ressalta Mayana Zatz. O bipap é o único recurso capaz de
ajudar também a jovem com distrofia de cinturas, que ganhou na Justiça o
direito ao transplante. Ela enfrenta problemas respiratórios, e o tratamento de
150 mil dólares beneficiará apenas os cofres da organização de Peter Law.
O transplante de mioblastos e os os homens que o executam estão também na mira
de sindicâncias do departamento jurídico do Ministério da Saúde, da Conep e
do Cremesp. A do Cremesp, aberta em 2001, tem o número 42.238/01.
Ironicamente, na sala de espera da clínica Genesys, de Fiori, Marques e
Ribeiro, há sobre a mesa das secretárias uma bíblia imensa. Durante os 20
meses da apuração desta reportagem, permaneceu aberta no mesmo Salmo: Glória
a Deus que recompensa os bons e castiga os pecadores. Talvez as pessoas que
vendem o falso tratamento entejam à espera da legítima justiça divina.
Fracassos encobertos
13.Jul.2002 |
Em 1997, três garotos brasileiros submeteram-se ao transplante de mioblastos
nos EUA. Foram os primeiros. Na seqüência, outros fizeram o mesmo, nos EUA ou
aqui. O número exato é impossível saber. Os seis jovens abaixo mencionados
ganharam na Justiça o direito ao tratamento, que foi pago pelos estados de São
Paulo e Santa Catarina com recursos do Sistema Único de Saúde, o SUS. Sonhavam
jogar futebol, correr, andar, e, segundo seus pais, estão assim:
- T.M., 20 anos, Criciúma (SC) – Praticamente, não tem pernas: quando
tenta movimentá-las, caem como duas tiras de pano; virar-se na cama só com
ajuda.
- J.B.G.C., 16 anos, Araranguá (SC) -- Recebe comida na boca, pois não levanta
os braços. Ainda desenha e joga videogame: digita tudo com auxílio de
pauzinhos.
- A.G., 17 anos, São Paulo (SP) – Está internado há quase quatro meses por
problemas respiratórios; não mexe braços ou pernas. Em 2000, sofreu parada
cardiorrespiratória.
- A.C., 17 anos, Lages (SC) – Não se movimenta e já tem dificudades respiratórias.
- L.T.F.M,16 anos, Macatuba, (SP) – Não anda; precisa de auxílio para
sentar-se no vaso sanitário. Ainda consegue usar computador.
- M.G.S., 13 anos, Lages (SC) – Já perdeu os movimentos de braços e pernas.
Até submeter-se ao transplante (tinha quase 10 anos, na época), andava. Em
seguida, coincidentemente, parou.
“O doutor Wagner Fiori disse que melhoraria, mas meu filho não recuperou os
movimentos”, revela a mãe, Albertina Silva. A força muscular de T. também
piorou. Por ocasião do transplante, ele flexionava bem os membros inferiores.
Depois, sofreu queda brusca dos movimentos. “Questionei o doutor. Peter Law
sobre a perda desproporcional da deambulação (ação de caminhar), até porque
sei de outros meninos que não andaram mais”, salienta o pai, Antônio
Martinhago. Hermínia Cordeiro, mãe de J.B., faz coro: “A parte motora
piorou; a respiratória melhorou um pouco, mas não sei se por causa do
transplante ou se é por que cuido bem”. Vera Gattai, mãe de A.G., joga a
toalha: “Mudar a história da doença, o transplante não mudou, não”.
Na avaliação da doutora Mayana Zatz, presidente da Associação Brasileira de
Distrofia Muscular, talvez em M.G.S, o transplante tenha acelerado a progressão
da doença. Os demais, aparentemente, estão tendo evolução natural de
Duchenne. Exame neurológico feito por determinação judicial em T.M., no final
de 2000, confirma. O neuropediatra e perito Jorge Humberto Barbato Filho, de
Santa Catarina, não constatou qualquer melhora no agora rapaz de 20 anos. Em
seu laudo afirma: eventuais melhorias atribuídas ao tratamento devem-se ao
uso no pós-implante de drogas imunossupressoras e fisioterapia, que podem
prolongar a vida dos pacientes. Ou seja, o transplante não aumenta nem
melhora a qualidade de vida, e maltrata bastante a criança: as mais de 750 injeções
aplicadas em várias áreas do corpo causam dor, inchaço, feridas, entre outras
reações. Ainda desgasta emocionalmente, tanto pacientes, quanto familiares.
“Prefiro ir a macumbeiro do que fazer de novo”, garante o pai de A.C., José
Tadeu Cruz. Dona Hermínia Cordeiro também não repetiria o transplante: “É
muito sofrimento para nada”. Já se tivesse condições financeiras, Elisete
Moraes, mãe de L.T.F.M., tentaria mais uma vez: “Por desencargo de consciência
a gente faz tudo, tudo mesmo”.
Por que é ineficaz
13.Jul.2002 |
Coração, diafragma e demais músculos do corpo humano precisam, para se
contrair, da produção de certas proteínas. A distrofina é uma fundamental:
funciona como moldura para as células musculares, mantendo-as íntegras. Sua
ausência, devido a problema genético, é a causa da distrofia muscular de
Duchenne. Essa descoberta levou pesquisadores a testar o transplante de
mioblastos. A exemplo do que acontece num gramado, esperava-se que, injetados em
músculos doentes, os mioblastos iriam sobreviver, enraizar e espalhar-se pelo
corpo, produzindo distrofina em quantidade suficiente. Nada disso, porém,
aconteceu. Além de rejeição imunológica, o método não melhorou a força
muscular e sequer o processo de degeneração do músculo foi diminuído. Quatro
prestigiosos grupos de pesquisadores americanos e canadenses provaram a ineficácia
do método. Entre eles, o liderado pelo professor George Karpati, do Instituto
de Neurologia da Universidade de Montreal, Canadá: “O método é ineficiente
em quaisquer mãos”, garante.
Incluem-se aí, claro, as do fisiologista chinês radicado nos EUA Peter K. Law.
“Ele nunca apresentou resultados de longo prazo; apenas com 30 dias”,
questiona o neurologista Acary Bulle de Oliveira, chefe do serviço de Doenças
Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp.
Além disso, o fisiologista recusa-se a debater e a oferecer à comunidade científica
para estudos biópsias dos músculos de seus pacientes. Também não menciona em
publicações nem em seu site que vários portadores de Duchenne transplantados
já morreram. “Até hoje não sabemos se o tratamento influenciou a idade da
morte ou a maneira pela qual morreram”, preocupa-se o professor Terence A.
Partridge, chefe do grupo de Biologia Celular do Músculo do Imperial College
School of Medicine, em Londres, Inglaterra. A inquietação procede, até porque
Law não relatou à Food and Drug Administration (FDA) efeitos colaterais
apresentados pelos pacientes ao tratamento, tais como: náusea, vômito, inchaço
de glândulas parótidas, têmporas, pálpebras e pernas, feridas no local das
injeções, febre, dor de garganta, aumento da pressão arterial e dos
batimentos cardíacos.
Como explicar então o alegado sucesso do método? Uma das hipóteses é o diagnóstico
inadequado. Uma infração detectada em um dos seus estudos pela FDA dá margem
a essa suspeita: pacientes foram incluídos em pesquisas sem que os diagnósticos
estivessem confirmados. Por isso, Victor Dubowitz, chefe da Unidade
Neuromuscular do Imperial College School of Medicine, em Londres, insiste: “No
momento, não há qualquer evidência que nos autorize a aplicar o método em
pacientes com Duchenne ou qualquer outra forma de distrofia muscular”.
Chegar aos 30 anos já
é possível
13.Jul.2002 |
A distrofia muscular de Duchenne compromete o diafragama (músculo fundamental
à respiração localizado logo abaixo do osso esterno, no centro do tórax), e,
ao redor dos 15, 16 anos, o jovem perde a capacidade de puxar ar para dentro dos
pulmões. Resultado: oxigenação deficiente do organismo, dias e até semanas
sem uma noite de sono, sobrecarga do coração, infecções respiratórias freqüentes
e óbito. Mas esse quadro felizmente está mudando graças à ventilação
assistida com o bipap. “Pela primeira vez temos um grande avanço”,
informa a geneticista Mayana Zatz, presidente da Associação Brasileira de
Distrofia Muscular, Abdim.
O portador de Duchenne tem pulmões normais, e – atenção ! -- receber oxigênio
puro pode ser fatal. A sua dificuldade respiratória deve-se à fraqueza do
diafragma. Daí a grande importância do bipap. Semelhante à máscara de
inalação, o aparelho leva ar para os pulmões, o que melhora a oxigenação e
diminui a sobrecarga cardíaca. “Introduzido no momento certo, prolonga a vida
e sua qualidade”, ressalta a médica Ana Lúcia Langer, uma das diretoras da
Abdim.
Trocando em miúdos: aumenta a sobrevida 10 anos, no mínimo, reduzindo
drasticamente as infecções respiratórias (principal causa de óbito) e as
hospitalizações. Por isso, a Abdim batalha para garantir o acesso gratuito dos
portadores de Duchenne ao equipamento. Em setembro de 2001 ganhou o primeiro
round: o Ministério da Saúde aprovou portaria assegurando esse direito. Agora
trava o segundo: fazer com que saia do papel.
O uso do aparelho não significa, segundo médicos sérios, abrir mão das
seguintes medidas que ajudam a aliviar os sintomas dos portadores de Duchenne:
- Fisioterapia – deve ser constante, e iniciada o mais cedo possível.
- Corticoterapia – na maioria dos casos, os corticosteróides por via
oral diminuem a velocidade de progressão da doença. Conseqüentemente,
permitem que a criança ande por mais tempo. Entretanto, como tem efeitos
colaterais, sua administração deve ser muito controlada.
- Cirurgia para correção dos tendões, principalmente de membros inferiores
– visa a diminuir a imobilidade que a retração acarreta. Afinal, à medida
que os músculos se atrofiam, há retração correspondente dos tendões e tendões
retraídos deformam as articulações. Rotina na Europa e nos EUA, essa cirurgia
já está sendo realizada aqui, segundo a neurologista e professora Umbertina
Conti Reed, chefe do Ambulatório de Distrofia Muscular do Hospital das Clínicas
de São Paulo. “Ela possibilita maior participação social da crianças”,
explica.