O que os portadores e pais de crianças com distrofia muscular precisam saber sobre a terapia com corticóides

                                                                                                                      Ana Lúcia Langer*

                 As distrofias musculares são doenças genéticas que afetam primariamente os tecidos musculares estriados. A distrofia muscular de Duchenne é considerada a doença genética letal mais comum da infância e, por sua gravidade, deveria ser agressivamente tratada e suas complicações, prevenidas. Porém, apesar dos últimos avanços científicos que envolvem pesquisas em terapia genética e celular, não há até o momento um tratamento realmente efetivo para estas patologias. Há, sim, opções que podem tentar retardar sua progressão. 

                Entre os vários medicamentos e suplementos dietéticos que já foram tentados, temos os aminoácidos, bloqueadores de canais de cálcio, hormônios de crescimento, bloqueadores de hormônio de crescimento, inibidores de proteases, vasodilatadores, coenzima Q10, esteróides catabólicos e anabólicos, imunosupressores, vitaminas e muitos outros.   Algumas destas substâncias podem ser promissoras, mas ainda deverão ser melhor investigadas antes de serem administradas a humanos. Outras,são dadas empiricamente, muitas vezes pela própria família, por terem mínimos efeitos adversos e efeitos positivos sugeridos em estudos animais. Porém, um grupo de drogas, os glicocorticóides, já mostraram benefícios significantes para pacientes com algumas formas de distrofia muscular. Entretanto, como podem ter importantes efeitos colaterais, pacientes submetidos a este tratamento devem ser monitorados cuidadosamente. Apesar de tudo, os corticóides representam o grupo de drogas que isoladamente demonstrou melhor sua eficácia no tratamento dos pacientes distróficos e sua introdução deveria acontecer, se possível, o mais precocemente.

                A seguir, abordaremos os principais corticóides usados no tratamento das distrofias, começando pela prednisona, considerada como modelo para estudo dos efeitos da corticoterapia por sua antigüidade e por ser amplamente usada.

 Prednisona

                A  prednisona, um esteróide catabólico,  testada desde 1970, tem se mostrado extremamente promissora em diminuir o ritmo de  degeneração muscular. É a droga mais amplamente usada para o tratamento de distrofia muscular de Duchenne – DMD. Em alguns casos a capacidade de caminhar pode ser prolongada por 2 anos ou mais. Além disso, pacientes tratados podem mostrar uma melhora significativa na função respiratória e melhor preservação funcional do ventrículo esquerdo. 

            Os esteróides catabólicos ajudam o corpo a liberar a glicose e, portanto, mobilizar energia em resposta ao stress ou perigo. Entretanto, o exato modo pelo qual a prednisona ajuda os pacientes com DM é ainda desconhecido, podendo estar relacionado com efeitos antinflamatórios ou imunossupressores. Os linfócitos T citotóxicos que migram para a retirada das células lesadas são retardados, minimizando a resposta inflamatória e a fibrose decorrente. Deve-se ressaltar que nas distrofias musculares, em especial nas distrofinopatias (DMD e DMB), a agressão inflamatória tem papel importante na patofisiologia da degeneração. Alguns pesquisadores tem especulado que a prednisona possa, também, estimular a produção de proteínas musculares.

             Devido aos seus efeitos relacionados ao metabolismo dos açúcares, os esteróides catabólicos são também conhecidos como glicocorticóides. Eles são produzidos e liberados da porção externa da adrenal (córtex) e, portanto, são também conhecidos como corticosteróides. A prednisona é uma forma sintética de um corticosteróide natural, a hidrocortisona.

             Testes controlados claramente confirmam os efeitos positivos da prednisona. Há aumento de força e massa muscular (embora os níveis da enzima CK possam permanecer inalterados) e preservação, também, da função pulmonar e cardíaca. Por outro lado, quando há uma parada no uso da prednisona, parece haver uma perda rápida dos benefícios adquiridos, não importando quão longo o tempo que foi utilizado. O momento da introdução da esteroidoterapia tem se tornado cada vez mais precoce, embora não haja ainda consenso. Os trabalhos na literatura já falam em 3 anos para se iniciar o tratamento.

             Por outro lado, os efeitos colaterais com o uso da prednisona não podem ser desprezíveis, o que inibe alguns pacientes de fazerem seu uso.  Entre eles podemos citar:

       a)     Retenção de líquidos

       b)    Retenção de sal

       c)     Hipertensão arterial – temos visto raramente este efeito.

       d)    Catarata

       e)     Diabetes – há um aumento da glicemia devido ao efeito glicocorticóide. Caso haja tendência, pode ocorrer o desenvolvimento de diabetes.

       f)      Osteoporose – Decorre da diminuição da absorção intestinal de cálcio; aumento de sua eliminação urinária; inibição da função de osteoblastos, células que contribuem para a síntese da massa óssea; estimulo à função de outro tipo de célula óssea, os osteoclastos, que, através de suas enzimas, estimulam a reabsorção óssea. A osteoporose pode ser prevenida com o uso concomitante de suplementos como cálcio e vitamina D. Nos casos de terapia contínua, o uso preventivo de drogas da classe dos bifosfonatos (alendronato, risedronato) deve ser considerado.

       g)     Baixa estatura – pode ser um efeito colateral benéfico em DM. Sabe-se que anões com DMD tem uma forma mais branda da doença.

       h)     Aumento do apetite – deve-se monitorizar a dieta com finalidade de evitar ao máximo a obesidade.

       i)       Alterações comportamentais – raras

       j)              Efeitos imunossupressores – podem ser minimizados através de esquema vacinal completo.

k)            Inibição dos hormônios sexuais – há, principalmente no uso contínuo, retardamento da fase puberal. Nesta fase há uma grande absorção de cálcio que colabora para o pico de massa óssea , entre 20 e 30 anos em indivíduos normais. O retardamento neste momento suprime esta absorção, colaborando ainda mais para a tendência à pouca massa óssea dos portadores.

l)              Supressão da função glândula supra-renal ou adrenal uma vez que esta glândula deixa de produzir seus hormônios característicos, a cortisona e/ou a aldosterona, quando o esquema terapêutico de corticóide for superior a 2 semanas. A partir deste momento a retirada da droga deve ser gradativa pelo risco de haver um quadro conhecido por insuficiência adrenal (ou supra-renal) aguda. O paciente apresenta quadro importante de fraqueza, náuseas, vômitos, tonturas, dor e desconforto abdominal, confusão mental, pressão arterial baixa (hipotensão arterial), febre, hipoglicemia, desidratação, choque circulatório e coma. Se o quadro não for identificado, o paciente corre risco de morte.

     m)         Quando há esquema contínuo de tratamento, também em virtude da supressão da glândula adrenal, não há resposta à stress. Nestes momentos, por exemplo, quando o paciente for submetido a cirurgias ou em estados infecciosos, há necessidade de suplementação de doses maiores do hormônio.

                    Uma estratégia importante de prevenção nestas 2 últimas situações descritas é a orientação. Todos os pacientes devem ser informados de que não poderão suspender abruptamente a medicação, além de, se possível, portar identificação referente ao uso destas substâncias e receber orientação quanto à necessidade de aumentar a dosagem da cortisona em situações de stress.

                  Todo quadro clínico acima descrito relacionado aos efeitos do uso crônico de corticóides configura o que chamamos de Síndrome de Cushing. Esta condição, mais comunmente vista em mulheres é devida ao excesso de produção de corticosteróides pela córtex da adrenal decorrente de tumores nesta glândula ou do lobo anterior da hipófise ou por excessiva e prolongada ingesta de glicocorticóides para propósitos terapêuticos. Entre os sinais e sintomas da Síndrome de Cushing temos: rápido desenvolvimento de adiposidade na face, pescoço e tronco, cifose causada pela osteoporose da coluna, hipertensão, diabetis mellitus, amenorréia (ausência de menstruação), hipertricose (excesso de pelos) nas mulheres, impotência nos homens, estrias avermelhadas, policitemia (excesso de glóbulos vermelhos), dor abdominal e nas costas, fraqueza muscular.

                  Há dúvidas sobre os vários esquemas terapêuticos, quais seriam mais adequados e eficazes e com menores efeitos colaterais. Tentando responder algumas questões, o grupo do CIDD (Clinical Investigation of Duchenne Dystrophy), formado por vários grupos que testaram a prednisona no final dos anos 80, mostrou que:

       a)     A prednisona aumenta a força e a massa muscular

       b)    O aumento é detectado logo nos primeiros 10 dias de tratamento, havendo um pico em torno de 3 meses e uma manutenção por 18 meses ou mais.

       c)     Pacientes que tem usado por 3 anos ou mais, o declínio da força e da função é mais lento que os controles  com história natural da doença.

       d)    Há um retardo do declínio da função pulmonar.

       e)     O regime mais efetivo é de 0,75mg/kg/dia.

       f)      O regime de dias alternados não mantém a força tão bem e os efeitos colaterais não são significantemente  diferentes.

       g)     O regime de 0,3mg/kg/dia foi também tentado, mas não foi tão efetivo.

                A razão mais comum da descontinuação da prednisona ou redução da dose é o ganho de peso.

               Sansone, Dubowitz et al. descreveram um regime no qual é oferecida prednisona nesta mesma dose ( 0,75mg/kg/dia) por 10 dias no início de cada mês. Eles obtiveram aumento de força até 6 meses, com um lento declínio em 12 a 18 meses. Atualmente estão usando um regime onde a medicação é usada por 10 dias, a seguir é feita uma interrupção por 10 dias, novamente a droga é introduzida por mais 10 dias e assim sucessivamente, com bons efeitos. Este esquema terapêutico tem ganho apoio de vários médicos por mostrar sua efetividade e por minimizar os efeitos colaterais. Uma sugestão seria usar o esquema 10 dias mensais para crianças mais novas e a partir de 3- 4 anos, desde que esteja havendo boa evolução, passar para 10 dias sim, 10 não. Havendo comprometimento mais importante ou rápida evolução, o esquema mais freqüente poderia ser antecipado.

             Recentemente um grupo testou um novo esquema com 10mg/kg/semana por 3-16 meses, dando 5mg/kg/dia em 2 dias consecutivos, com resultados tão positivos quanto o esquema diário e com menores efeitos colaterais. 

    Deflazacort

              Um outro esteróide catabólico, o deflazacort, vem sendo ministrado para terapia das distrofias musculares, especificamente para DMD. O deflazacort é uma oxazolona derivada da prednisona, com efeitos antinflamatórios e imunossupressores comparáveis a ela. A equivalência terapêutica é de aproximadamente 1,2mg de deflazacort para 1mg de prednisona. Pelos estudos, a dose ótima preconizada é de 0,9mg/kg/dia.

              Os efeitos de retardamento da degeneração muscular e preservação da função pulmonar e cardíaca foram comparáveis aos da prednisona. Outro achado de impacto foi o retardamento da necessidade cirúrgica para correção da escoliose.

              Em relação aos efeitos colaterais, observa-se que os pacientes em uso de deflazacort têm menor ganho ponderal que os de prednisona, porém a incidência de catarata é significativamente maior. A supressão do crescimento é outro efeito colateral importante do deflazacort embora, de forma semelhante à prednisona, este efeito colateral possa ser considerado benéfico para os pacientes com  DM.

               Alguns grupos defendem o uso do deflazacort de forma contínua em detrimento do esquema intermitente com prednisona por considerá-lo mais efetivo.

    Um critério que deve ser pesado na escolha do tipo de corticóide a ser ministrado é o econômico. O deflazacort é extremamente mais oneroso que a prednisona e, muitas vezes, um benefício discutível poderá inviabilizar o tratamento.

               Enfim, a terapia esteróide é a única maneira de comprovadamente retardar os efeitos degenerativos das distrofias musculares. Não há consenso na literatura sobre qual o melhor esquema. Pessoalmente, tenho sempre tentado iniciar com esquema intermitente por haver menores efeitos colaterais. Numa fase intermediária da doença ou quando esta tem uma maior agressividade, discuto prós e contras com meus pacientes e, juntos, tomamos a difícil decisão da mudança do esquema.

                 No esquema contínuo o controle do paciente deve ser mais rigoroso. Além disso, uma vez iniciada a forma contínua de tratamento, o retorno para forma intermitente implicaria no desmame do corticóide com perda de todas as vantagens conseguidas por este até então. Em outras palavras, não deve haver este retorno.

 

 * Vice-Presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular. Pediatra do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Hospital Israelita Albert Einstein.